Uma conversa com Paulo Scott sobre Marrom e Amarelo
“A minha inquietação, que me leva a escrever, gira em torno de uma análise bem permanente do que seria a identidade brasileira, já que somos um país que se pretende branco, mas que não é branco em hipótese alguma”, afirma Paulo Scott, escritor negro. “Somos um país colônia, que não se reconhece e que por vezes tem dificuldade de olhar no espelho e descobrir nossa originalidade, nossa voz”.
Em Marrom e Amarelo (editora Alfaguara, 2019), seu último livro, acompanhamos Federico, um homem negro cujo fenótipo se assemelha ao da população branca, em sua tarefa de auxiliar a criação de um software contra fraudes no sistema de cotas para o ingresso nas Universidades Públicas. Essa experiência racial do protagonista faz com que suas relações sejam uma espécie de não-lugar. Seja no amor, na militância política, na própria família, na ancestralidade de Porto Alegre e Brasília, Derico, como é apelidado, ocupa uma posição particularmente brasileira.
Federico, logo nas primeiras páginas do romance, se depara com a tarefa de participar da dita comissão. O estranhamento com que ele, vestindo uma camiseta dos Racionais MC’s e um Tênis Rainha VL, é recebido pelos pares de “pretensos notáveis” já destaca a tônica do romance. Pensar a própria identidade nacional pelas pouco mais de 150 páginas, escritas durante cinco anos, é também pensar em como a literatura brasileira dialoga com a pluralidade conflitiva da nossa constituição racial.
“Trabalho sim com personagens não brancas desde o meu primeiro livro de contos. Eu, com mais de vinte anos de publicação, doze livros, chego ao meu primeiro livro em que não recebo o rótulo de autor que trabalha com personagens marginais”. Scott fala da perspectiva do artista sobre um retrato constatado pela escritora Regina Dalcastagne. Dos 258 romances analisados entre 1990 e 2004 pela pesquisadora, apenas 7,9% dos personagens são negros.
O autor prossegue sua crítica ao panorama histórico da literatura brasileira. Segundo ele, o rótulo de autor que trabalha com personagens à margem envolve também uma espécie de cegueira. “É um absurdo, porque geralmente esse rótulo vem de um centro legitimador, validador do que seria a literatura brasileira, ainda muito branca, muito masculina, por isso muito obtusa, submetida a um espectro hegemonizado por mentes e leituras do centro do país”.
Dessas mentes obtusas, não me excluo. Sou um ficcionista iniciante, homem, hétero, cis e branco. Meu interesse por literatura, entretanto, passa pelo entendimento que a leitura de perspectivas diferentes das minhas é fundamental para compreender como gira o meu campo estético.
Assim, o romance, não por acaso, me veio em mãos logo depois do assassinato de João Pedro e George Floyd. Se a morte do norte-americano me choca pela flagrante violência impetrada pelo Estado, a do menino acresce a essa necropolítica muita covardia e repetição. Nunca é sem tempo dizer que a polícia brasileira é uma das mais hediondas do planeta e já o faz durante uma par de décadas. Só para citar, um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, publicado pelo El País, aponta que a letalidade policial em São Paulo cresceu 31% no período entre janeiro e abril, mês que bateu recorde de mortes pela polícia (119, contra 78 em 2019) durante a quarentena. Fica o exercício de imaginação do que é a polícia.
Nessa toada, o romance me parece especialmente feliz ao problematizar a figura de um policial. O delegado Douglas persegue sistematicamente a família de Federico devido a brigas passadas e de difícil resolução. Assim como o faz sistematicamente, também o faz artisticamente. Tanto na obra, quanto na vida, a polícia puxa o gatilho de um projeto genocida.
“Não acredito que exista coincidência entre a perseguição de Douglas e a vida da família de Federico”, arremata Scott. Ao encabeçar uma caça à sobrinha de Federico, a polícia está atrás também de um ativista negro. Vida e arte se mesclam para falar de um quadro amplo das mazelas sociais brasileiras.
Entretanto, esse não é um livro engajado politicamente. Nem a obra de Scott poderia ser lida dessa maneira. A utilização de personagens não-brancos e seus diálogos com a sociedade ao redor, segundo o próprio autor, partem de uma inquietação dele como cidadão, e não de uma necessidade de adequação a um projeto político delimitado a priori. Quando perguntado sobre o que seria o engajamento político nos seus livros, ele responde: “Se minha obra é lida de maneira política, isso não é responsabilidade minha. Eu trabalho com minhas inquietudes, com os fantasmas que não saem da minha cabeça”.
Exemplo de como essa anti-aderência a uma bandeira está presente no autor é a diferença temática entre Marrom e Amarelo e O ano em que vivi de literatura (editora Foz, 2015). Enquanto o primeiro busca uma reflexão estética sobre o racismo, o segundo versa de maneira paródica sobre o profissionalismo da escrita. No livro de 2015, a vida de Graciliano, personagem principal, gira ao redor de uma premiação literária vultosa combinada com putaria alcoolizada, problemas familiares e, sobretudo, um escritor que não escreve.
Há, entretanto, uma semelhança fundamental entre os dois personagens centrais. Nas duas novelas o autor trabalha o desconhecimento como método narrativo. Tanto Federico quanto Graciliano não sabem das motivações de alguns personagens de seu entorno. Se não nos é mostrado porque Roberta dorme ao final de Marrom e Amarelo, nem suas motivações revolucionárias, tampouco se explicam de forma cartesiana as causas de Flávia e seu desaparecimento da família em O ano que vivi de literatura.
A prosa de Scott nesses dois livros pode e deve ser lida como uma inquietação pessoal e, por isso, intransferível, sobre um tempo histórico comum. Mas muito cuidado. “Não venha querer capitalizar o esforço literário em uma pauta meramente política”.
Título original: MARROM E AMARELO
Capa: Alceu Chiesorin Nunes
Páginas: 160
Formato: 15.00 X 23.40 cm
Peso: 0.3 kg
Acabamento: Brochura
Lançamento: 12/08/2019
ISBN: 9788556520913
Selo: Alfaguara
Gabriel Cruz Lima é estudante de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e graduando em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de O último romântico (Bar editora, 2020). É tio da Maria Luiza e escreve contos e crônicas quando os chakras se alinham.
Paulo Scott nasceu em Porto Alegre, em 1966. Escritor e professor universitário, publicou doze livros. Recebeu os prêmios Machado de Assis, da Fundação Biblioteca Nacional, APCA, Açorianos de Literatura, entre outros, e foi finalista de prêmios como Jabuti e prêmio São Paulo de Literatura. Vive atualmente em São Paulo.